Individuação e suas dimensões na animação valente, uma jornada

“Ela leva ao nascimento de uma consciência da comunidade humana, justamente porque nos torna cônscios do inconsciente, que une e é comum a toda a humanidade”. (JUNG 1966, p.108).
Jung (1991) como analista, descobriu que aqueles que vinham a ele na primeira metade da vida estavam relativamente desligados do processo interior de Individuação; seus interesses primários centravam-se em realizações externas, no “emergir” como indivíduos e conseguir alcançar os objetivos do Ego. Analisando os mais velhos, que haviam alcançado tais objetivos, de forma razoável, tendiam a desenvolver propósitos diferentes, interesse maior pela integração do que pelas realizações, busca de harmonia com a totalidade da psique. Na teoria junguiana, o ego é também um complexo.
“Portanto, em minha concepção, o ego é uma espécie de complexo, o mais próximo e valorizado que conhecemos. É sempre o centro de nossas atenções e de nossos desejos, sendo o cerne indispensável da consciência” (JUNG, 2008, p. 7-8)

Toda personalidade é formada a partir de um centro que é responsável por seu desenvolvimento, ou seja, o self não é apenas o ponto central, mas abarca a totalidade. Assim, o self, através dos acessos e ativações dos arquétipos, motiva a formação e desenvolvimento do ego.  O Complexo de Ego, para Jung (1991) encontra-se no inconsciente pessoal, o núcleo deste complexo assim como de todos os demais é arquetípico, ou seja, surge do inconsciente coletivo. Para Jung existem tantos arquétipos quantas as situações típicas da vida. O Ego também é visto por Jung como resultante do choque entre as limitações físicas e corporais da criança e a realidade ambiente. A frustração ajuda a formar ‘ilhotas’ de consciência que se juntam ao Ego. O Ego, assevera Jung, adquire sua plena existência durante o terceiro ou quarto ano.

“Ego é ‘alguém’ que começa a dar início a sua jornada heróica em busca da totalidade do Self, em busca da meta do Processo de Individuação. Isto é tornar-se Indivíduo.” (JUNG, 1991, p. 406).

O primeiro passo no processo de Individuação é o desnudamento da Persona, embora esta tenha funções protetoras importantes, ela é uma máscara que não deixa o Self manifestar-se de forma adequada.

Ao analisarmos a Persona, dissolvemos a máscara e descobrimos que, aparentando ser individual, ela é de fato coletiva; em outras palavras, a Persona não passa de uma máscara da psique coletiva. No fundo, nada tem de real; ela representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade acerca daquilo que alguém parece ser: nome, título, ocupação, isto ou aquilo.

Segundo Jung (1964), Persona em latim, a máscara, significa “soa através”. Partilhando uma identidade psíquica com o personagem existente no mito e no simbólico, o homem apropria-se das máscaras. O homem moderno mantém a relação simbólica com a máscara, ainda que não a utilize como no passado, permanece no inconsciente e demarca a presença humana no mundo.

“Persona é um complicado sistema de relação entre a consciência individual e a sociedade; é uma espécie de disfarce destinado a produzir efeitos sobre os outros e, por outro lado, a ocultar a verdadeira natureza do indivíduo”. (JUNG,1978, p. 68).

De certo modo, tais dados são reais, mas em relação à individualidade essencial da pessoa, representam algo de secundário, uma vez que resultam de um compromisso no qual outros podem ter uma quota maior do que a do indivíduo em questão, ou seja, não podemos acabar com a persona, visto que necessitamos dela para conviver em sociedade, mas podemos considerar que ao desenvolver uma persona flexível, consciente de suas atuações, equilibrando assim o mundo externo com o seu interior, com a sua essência, ficará mais próximo do si mesmo, ao invés de ser somente fruto de um meio, sobre o qual se vive.

O confronto com a Sombra, já seria um próximo passo, ou melhor explicitado, na medida em que nós aceitamos a realidade da Sombra e dela nos distinguimos, podemos ficar livres de sua influência. Além disso, nós nos tornamos capazes de assimilar o valioso material do inconsciente pessoal que é organizado ao redor da Sombra.

“Sombra é a parte inferior da personalidade. Devido a sua incompatibilidade com a forma de vida eleita pela consciência, não foram plenamente vivenciados. Estes conteúdos formam uma personalidade parcial e autónoma com tendências opostas ao inconsciente. Tornar consciente a sombra é o trabalho inicial da análise” (JUNG, 1971, p.168,169).

No confronto com a Anima ou Animus na Individuação, segundo Jung (2008), cabe ao par Arquetípico de Animus e Anima importância especial, pois nos permite alcançar as camadas mais profundas da psique. São os intermediários entre o consciente e o inconsciente. Este Arquétipo deve ser encarado como uma pessoa real, uma entidade com quem se pode comunicar e de quem se pode aprender. Jung faria perguntas à sua Anima sobre a interpretação de símbolos oníricos, tal como um analisando a consultar um analista. O indivíduo também se conscientiza de que a Anima (no homem) e Animus (na mulher), ou seja, figura interior de mulher contida num homem e a figura de homem atuando na psique de uma mulher, embora desiguais nos modos como se manifestam, têm certas características em comum, uma autonomia considerável e de que há probabilidade dela influenciar ou até dominar aqueles que a ignoram ou os que aceitam cegamente suas imagens e projeções como se fossem deles mesmos. Jung resumiu anima/animus como “imagens da alma”. Posteriormente elucidou esta afirmação chamando a cada uma delas de não-eu. Ser não-eu, para um homem corresponde, com muita probabilidade, a algo feminino e, porque é não-eu, está fora de si próprio, pertencendo à sua alma ou ao seu espírito. A anima (ou animus, conforme o caso) é um fator que acontece a um indivíduo, um elemento apriorístico de disposições, reações, impulsos no homem; de compromissos, crenças, inspirações em uma mulher – e, para ambos, algo que induz o indivíduo a tomar conhecimento do que é espontâneo e significativo na vida psíquica. Por trás do animus, alegava Jung, jaz

“O arquétipo de significado; exatamente da mesma forma que anima é o arquétipo da própria vida. (JUNG, 2008, p.258)

O estágio final do processo de Individuação é o desenvolvimento do Self. Segundo Santos[3], Jung dizia que o Si- Mesmo é nossa meta de vida, pois é a mais completa expressão daquela combinação do destino a que nós damos o nome de indivíduo. O Self torna-se o novo ponto central da psique, trazendo unidade a ela e integrando o material consciente e inconsciente. O Ego é ainda o centro da consciência, mas não é mais visto como o núcleo de toda a personalidade.

Jung(1985), escreve que devemos ser aquilo que somos e precisamos descobrir nossa própria individualidade, aquele centro da personalidade que é eqüidistante do consciente e do inconsciente. Dizia que precisamos visar este ponto ideal em direção ao qual a natureza parece estar nos dirigindo. Só a partir deste ponto podemos satisfazer nossas necessidades.

RESUMO DA HISTÓRIA

No filme a princesa Merida, é criada pela mãe para ser uma perfeita princesa e a sucede-la como rainha. Merida precisa seguir protocolos e etiquetas. Tudo conforme o costume dos antepassados. Ela precisa ser uma dama! Prefere caçar com seu arco e flecha e cavalgar pelas florestas selvagens da Escócia. Sua mãe tem outros planos, casá-la! Para isso organiza uma competição de forma a escolher seu futuro marido. Nesse instante, se vendo obrigada a casar, recorre à ajuda de uma bruxa. A bruxa então lhe da uma poção no intuito de mudar sua mãe. Quando a poção surte efeito, a transformação da rainha não é exatamente a que Merida esperava… E ai caberá à jovem ajudar a sua mãe e a impedir que o reino entre em guerra com os povos vizinhos. Agora farei uma articulação do filme “VALENTE”, um filme de animação americana de 2012, dirigido por Mark Andrews e Brenda Chapman e produzido pela Pixar Animation Studios, com o conceito de INDIVIDUAÇÃO segundo Jung. Em especial destacarei o feminino. A jovem Valente terá que lidar não apenas com a sua própria Sombra, mas com todos os processos que se desencadeiam até chegar ao entendimento da sua própria personalidade e crescimento pessoal.

TRAJETÓRIA DA VALENTE, UM PERCURSO DA JORNADA DO HERÓI E SUAS DIMENSÕES.

Logo na primeira cena, vemos Merida, ainda pequena com a sua mãe, num acampamento. Elas aparecem em perfeita harmonia e sincronia. Essa é a essência de toda criança: harmonia com a figura da mãe, entendimento mútuo, Merida é uma extensão da sua mãe, onde começa uma e termina a outra? O pai Fergus, rompe em seguida com essa simbiose. Percebo que no simples ato de dar de presente de aniversário um arco para a filha, separa-a do mundo materno, dando a ela uma nova condição: de ser alguém por si mesma. Rompe a simbiose com a mãe, função paternal. Fergus significa “homem vigoroso”, muito bem representado no tamanho e força que esse líder possui. Elinor, é bem diferente dessa relação, enquanto está com Merida no acampamento, apresenta-se no aspecto maternal, cuidando com muito desvelo das criaturas pequenas e indefesas. Uma das coisas que ela faz é nutrir, o que fica claro pela quantia de comida que há nas mesas espalhadas pelo local. Porém, ela também é esposa do governante, representante do casamento e do status social. Quando Fergus chega e presenteia Merida, é imediatamente criticado o presente dado, acrescentando que arcos não são presentes a serem dados a uma menina. Nessa cena incial, já temos vislumbrado o que acontecerá ao longo do processo: uma filha que se identifica com o pai e com a mãe, que em dado momento vai ter que enfrentar esse aspecto dominador da figura materna para que possa se tornar indivíduo, tendo um pai que, apesar da força, tamanho e poder que tem, nem sempre consegue intervir.

A primeira vez que uma luz mágica aparece no desenho é aqui. Ela é definida como guia do destino. Fergus zomba de Merida e Elinor, dizendo que uma flecha é que a levará ao seu destino. A luz representa conhecimento ancestral, intuição, a sabedoria que surge para guiar nos momentos difíceis.Pois é isso mesmo o que ela faz ao longo da história, em momentos diferentes. A flecha é um símbolo de direção, de objetividade. Podemos pensar que a flecha leva também ao objetivo, ao destino, mas também causa sofrimento para alcançar o ponto final. Assim, partimos para o início do processo de individuação de Merida.

A pequena princesa guerreira celta cresce. Já adolescente, é obrigada a se enquadrar nos moldes pré-determinados da mãe, Merida tem uma energia rebelde e indomável aos olhos da mãe.  E é assim que Elinor vê a filha: impossível. São forças diametralmente opostas, pois a primeira acredita que a mulher não tem poder sobre seu destino e a segunda acredita firmemente na mulher como condutora de sua própria vida e escolhas. Além disso, ao exigir que Merida absorva todo aquele conhecimento pronto, tenta transformá-la, ou seja, Elinor tenta transformar Merida numa extensão de si mesma, além dessa questão do submeter-se às regras, surge também uma tentativa enviesada de resgatar o vínculo inicial, aquela sensação de todo e simbiose que vivenciamos com as crianças pequenas. Isso é muito comum de acontecer entre mães e filhas, a mãe desejar que a filha seja o mais semelhante possível de si mesma, uma cópia, como necessidade de identificação, fenômeno projetivo ou apenas necessidade de continuidade de si mesma. E a adolescente, no caso, faz de tudo para se diferenciar da mãe pois, afinal, são duas pessoas diferentes. Ao sair com Angus para o dia na floresta, Merida resgata sua essência. É maravilhosa a cena dela montada em disparada, atravessando a ponte que liga o castelo à floresta.

E o que essa ponte liga é justamente um castelo, construção feita por mãos humanas, representação de um mundo dominado por regras e normas de conduta, um mundo masculino, e a floresta, selvagem, verdejante, úmida, pulsante, território da mãe-terra, de Gaia, portanto um mundo feminino instintivo. Estar perdida na floresta é estar perdida em si mesma, em sua essência. É a expressão da individualidade de Merida e fica mais explícito qual é o tipo de energia que Merida possui. Energia essa que não interessa a mãe. Com a chegada das cartas dos líderes de outras tribos confirmando a vinda para o torneio, fica claro o que Elinor tem em mente para a filha: casamento. Só que Merida não quer se casar.  Casar-se significa entrar no mundo da mãe, tornar-se uma igual, talvez se tornar a própria mãe. Merida recorre ao pai para protegê-la, mas esse se vê sem voz diante da autoridade da esposa, a rainha, mesmo ele sendo passivo ele teve a postura inicial a dar o corte na relação mãe e filha. A impressão que se tem é que Fergus é visto como um pai amoroso ao seu modo, figura paterna de fato, enquanto Elinor é a rainha, autoridade, figura de poder e não materna. Casar-se equivale a se distanciar de si mesma. A mãe prende a filha num vestido, onde Merida mal consegue se mexer. A mãe tenta imobilizá-la, talvez porque de alguma forma sabe do que sua filha é capaz de fazer quando livre. A mecha de cabelo que Merida teima em deixar aparecendo é símbolo de sua rebeldia, tenacidade, força. É símbolo do quanto ela pode ser irrefreável. Chegam os líderes e Merida opta pelo duelo com arco e flecha, pois pretende lutar por si mesma (já que os primogênitos dos 4 clãs podem duelar). Olha a tomada do destino em suas próprias mãos! No começo da história, Fergus pontua que o destino vai chegar por uma flecha. Sim, Fergus não quis profetizar, inclusive zombou desse tipo de atitude, mas é o que ele fez sem intenção. No torneio, três coisas muito importantes devem ser pontuadas: os irmãos de Merida, a aliança silenciosa entre pai e filha e o confronto com a mãe. Os irmãos de Merida aparecem desde o começo como três pestinhas. Na realidade, percebo os três como representações de características da própria Merida, talvez da família. Os três são irrefreáveis, indomáveis, tenazes, persistentes, estratégicos e impulsivos.  A aliança entre pai e filha se evidencia pelas piadinhas que trocam enquanto os representantes dos clãs lançam suas flechas. Ambos deixam claro o quanto acham aquilo tudo um disparate. Em nenhum momento Fergus fala declaradamente que acha ridículo o torneio, mas corrobora a tese da ridicularidade ao rir junto à filha. E, por fim, aqui Merida declara guerra com a figura materna e confronta a mãe. Deixa claro que o destino dela quem rege é ela mesma. Lutar por sua própria mão é lutar por si mesma. Rasgar o vestido de princesa sendo oferecida em casamento numa bandeja é livrar-se das regras. Soltar os cabelos equivale a libertar-se e declarar sua essência, que é diferente da essência da mãe. Merida, ao usar as armas, coloca-se na mesma posição do masculino, como se ela dissesse: não comercializem minha liberdade, aquele que ousar será ferido mortalmente. E ela prova isso acertando as flechas no centro dos 3 alvos. Elinor declara que Merida é uma portadora do mal, pensamento totalmente patriarcal, pois ela envergonhou a todos perante os outros líderes.

Após o confronto com a mãe, quando Merida rasga a tapeçaria e Elinor joga o arco ao fogo, a princesa foge com Angus para a floresta. Floresta é um dos símbolos para inconsciente. Sempre que alguém adentra uma floresta está adentrando o inconsciente, buscando respostas mais profundas. Merida, além de refugiar-se onde se sente mais segura, sai em busca de algo que acalente seu coração. Sai em busca de respostas e ao sair do círculo de pedras, a dupla encontra uma clareira onde está a casa da bruxa.

A princesa solicita um feitiço que mude seu destino, mas associa a isso a mudança da mãe. Merida não consegue reconhecer que talvez ela também precise de mudanças, não só a mãe. Não é capaz, ainda, de reconhecer suas dificuldades, suas falhas e até mesmo as semelhanças com a figura materna. Mudar a mãe é mudar o destino? Sim, é. Mas não da forma esperada. Voltando ao castelo, Merida oferece o doce a Elinor, que o come e imediatamente começa a sofrer os danos. Ela se transforma numa ursa, símbolo que representa a nobreza, a força, a resistência. Quando ambas entendem a transmutação, a primeira fala de Merida é: “não queria te transformar em urso, a culpa não é minha!”, mais uma vez isentando-se de sua responsabilidade.

Elinor, como urso, andando em duas patas, mantém sua humanidade. A coroa em sua cabeça é um lembrete disto. Ela continua sendo a rainha. Outra coisa interessante é que ela se incomoda com o fato de não estar vestida. Sim, pois as roupas dizem respeito a nossa persona, aquilo que queremos que o mundo veja de nós. Agora Elinor está nua em sua essência. A rainha fica muito desastrada dentro dessa nova forma, não só por não estar acostumada ao tamanho de um urso, mas também por estar há muito afastada dessa própria natureza. Como rainha, se afastou de necessidades mais básicas e primitivas, se afastou de necessidades mais corporais. Há um desconforto generalizado com o próprio corpo, com a própria pele. Elinor sente-se confortável com o papel que ela assumiu em sua vida, mas não se sente confortável quando seus instintos estão desnudos e expostos. Ela mesma não confia em seus instintos, nem mesmo se lembra como utilizá-los. Mãe e filha seguem para a floresta. A rainha dá indícios de ainda saber utilizar seus instintos quando encontra a casa da anciã por sua própria natureza selvagem, a mãe-ursa, cheirando o ar, encontrou aquilo que procuravam. Elinor recorre à sua memória ancestral, a sua natureza selvagem, e é isso o que lhe dá condições de encontrar o caminho. O recado que encontram no casebre é “sina alterada, OLHE SUA ALMA. Remende a união por orgulho separada”. A sábia é clara: olhar a alma. Parece que o recado é apenas para a princesa, mas na realidade é uma tarefa que ambas necessitam cumprir para que possam recuperar seus destinos. Em algum momento, Merida conclui que precisam remendar a tapeçaria, mas não. Na realidade, o que precisam remendar é sua relação. Ambas estavam feridas em suas essências, em suas almas. Ambas ultrapassaram limites. O remendo é a convivência, o entendimento, a empatia, a cumplicidade, que se estabelece enquanto ambas estão na floresta. Os papéis se invertem: a filha passa a cuidar da mãe. A mãe precisa da filha como guia, precisa aprender a confiar em sua adolescente e esta, por sua vez, precisa aprender a controlar sua impulsividade, libertar-se de seu egocentrismo e cuidar da mãe. O exercício é árduo para ambas, principalmente para Merida, pois exige dela controle emocional, paciência e total atenção no outro. É um exercício de maturidade, pois Merida tem ferramentas que a mãe não tem e que podem facilitar muito a vida de ambas. Ambas, entram dentro da água, em suas essências, as defesas caem e a comunicação, mesmo que não verbal, acontece de forma harmônica, sem entraves. A rainha age espontaneamente, de forma leve, o que faz com que Merida consiga se identificar com a mãe. Quando a mãe-ursa deixou sua coroa fora da água, livrou-se de sua autoridade. Deixa de ser rainha e passa a ser mãe. Passa a ser um indivíduo, uma pessoa. Ela se torna humana, apesar da forma física. E é isso o que permite a sintonia entre ambas. Ao sair da água, Elinor esquece a coroa e mantém-se nas quatro patas. Deixar a coroa pra trás equivale a abrir mão de suas características humanas e aproximar-se cada vez mais da vida instintiva, do seu aspecto animal. Até mesmo seu aspecto sombrio. Sem as características de humanidade, sua filha se torna uma ameaça. Há uma mudança sutil em seus olhos (de castanhos dourados com pupilas tornam-se negros e sem pupilas), o urso perde características de face humana, tornando-se mais animalesco e agressivo. Elinor ameaça atacar a filha e apenas quando escuta o grito de “mãe” é que consegue recuperar sua consciência humana. Ambas param para ouvir a floresta. Ambas conseguem ouvir os assobios das luzes do destino e conseguem segui-las. Ambas estão em sintonia consigo mesmas, uma com a outra e com suas intuições. As duas se permitem adentrar uma no mundo da outra, quando abaixam as defesas, as vozes aparecem (os assobios das luzes) e elas são capazes de reencontrar seu destino. A energia pulsante, viva e extremamente eficiente de Merida agora tem um foco e função. Se antes ela corria a esmo pela floresta explorando e atirando, agora ela sabe se defender e defender a mãe. Ela tem compreensão de que são uma em essência, ao mesmo tempo que são unas em si mesmas. Quando uma mulher é una em si mesma, quer dizer que ela sabe quem é, ela tem consciência de sua existência e de suas responsabilidades. Ela se conhece e é capaz de reconhecer outras mulheres na mesma condição. Merida e Elinor fizeram caminhos opostos, mas paralelos. Elinor precisou regredir para entender a si mesma e a filha, e Merida precisou evoluir e amadurecer para entender a si mesma e sua mãe. Ambas chegaram no mesmo lugar: o reconhecimento de si mesmas.

Mor’du aparece, tirando o foco da dupla. Mais uma vez ele ameaça matar Merida e, com isso, atiça a fúria da mãe-urso. Não existe mais rainha ou ursa, apenas o arquétipo da grande mãe em seu aspecto mais divino e ao mesmo tempo mais cruel: a mãe desvelada no cuidado dos filhos, mas que é capaz de matar em prol da segurança dos mesmos. Nesse duelo entre os ursos, Mor’du derrotado.

Ao amanhecer, Elinor não retorna a sua forma de mulher, mesmo estando coberta pela tapeçaria remendada. Merida entra em pânico e chora muito, pedindo desculpas a mãe por tudo e se responsabilizando pelos acontecimentos dos últimos dois dias. Ao responsabilizar-se por suas escolhas e por seu destino, Elinor torna-se humana novamente, assim como os irmãos da princesa. Merida cresceu e amadureceu, reconheceu seus erros e escolhas equivocadas, responsabilizou-se pelos acontecimentos, tornou-se mulher. E tudo isso é o que faz a grande mágica acontecer, trazendo sua mãe de volta. A harmonia volta a reinar absoluta, mãe e  filha fazem uma tapeçaria onde Elinor é representada como urso e Merida está abraçada a ela. Esse foi o momento do reencontro, de escuta da alma e do coração, o momento de sintonia. É o momento da completude do encontro de ambas com o Si mesmo, ou seja, é assim completado o processo de individuação de ambas.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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JUNG, Carl.G. Obras Completas. V. XV. Relação da psicologia analítica com a obra de arte poética. In: O espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 1985.

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JUNG, Carl.G. Concepção e organização. O Homem e seus Símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho, 2ª ed. especial, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

Woman’s Mysteries in Coleção: Amor e Psique. São Paulo: Paulinas, 1985.

Dicionário crítico da análise Junguiana

SANTOS, Cacilda Cuba. Individuação Junguiana. São Paulo: Sarvier, 1976. 148p.

MONTEIRO, Dulcinéa, Jung e o Cinema, Revista Atualizada. 2012.

[1] Ivonete de Araújo Vizeu Gil, Estudante de Psicologia. Este artigo foi apresentado ao Curso de Formação profissional em Arteterapia, no Centro de Arteterapia Danielle Bittencourt/RJ (Cursando).

[2] Danielle Bittencourt, Mestre em Criatividade e Inovação-UFP; Pós-Graduada em Psicologia Junguiana-IBMR/RJ; Psicóloga – UVA/RJ; Arteterapeuta-Clínica – Pomar,RJ;  Terapeuta Familiar Sistêmica-Núcleo-Pesquisas/RJ; Graduada em Artes Plásticas-UDESC/SC; Coach facilitadora criativa do mestrado online  em Criatividade e Inovação pelo IACAT/Espanha. Coordenadora Geral e Acadêmica da formação profissional em Arteterapia do Centro de Arteterapia Danielle Bittencourt/RJ.

SANTOS, Cacilda Cuba. Individuação Junguiana. São Paulo: Sarvier, 1976. 148p

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